José da Felicidade Alves
Role
Felicidade Alves, entrado no seminário com 11 anos, ali viveu 12 anos como seminarista, seguidos de 8 como professor, o que o fez chegar aos 30 anos sem saber nada da vida política e social. Para me tornar mais evidente essa ignorância, explicou que só no seu 2º ano de Teologia, em 1945/46, conseguiram finalmente ter acesso a um jornal: E acrescentou: «Mas era o Novidades, e só podíamos ler durante o recreio. Aluno que fosse apanhado com rádio era expulso do seminário!»
Prior na paróquia de Belém, toma consciência de que há um mundo à sua volta: «Veio um grupo de pessoas da União Nacional à sacristia reclamar que lhes dissesse em quem ia votar. E eu, que se calhar se não me dissessem nada votava no Américo Tomás, perante aquela impertinência, disse: “Vou votar no Humberto.” “No Delgado? Porquê?” “Acho bonito, depois de uma Berta - a mulher do Craveiro - vir um Humberto.” Levei para a chacota. “O senhor está a brincar! Mas nós queremos saber em quem vota!” “No Arlindo. Então não fica bem um ar lindo em Belém?” “Queremos saber em quem o senhor vai votar!” E eu disse: “Em quem vou votar? Naquele que a minha consciência indicar.” E aí tomei consciência de que era livre. “Mas o senhor vai connosco!” Cercaram-me e, depois da missa do meio-dia, levaram-me à Junta de Freguesia para eu votar. Era uma fantasia da parte deles, porque o voto era secreto. E eles convenceram-se que, como ia com eles, ia votar no candidato deles - e eu votei em quem muito bem entendi. Mas isso levou-me a um certo distanciamento em relação a essas pessoas.»
Entretanto, a Igreja vivia um grande movimento de renovação com o Papa João XXII. Felicidade Alves sentia uma enorme esperança: «O optimismo do Papa, a manifesta convicção que ele tinha da verdade, a ausência de medo em encarar a verdade, a confiança que tinha na inteligência humana, aceitando o desafio da inteligência humana, foi uma esperança tão grande que entrámos em ebulição. Acreditei, como muitos outros, que a Igreja, enquistada há muitas gerações, desde o Concílio de Trento, a luta contra Lutero e contra os protestantes, ia finalmente retomar o dinamismo que lhe é próprio. Eu tinha entrado na Igreja por uma opção cega, tinha um amor cego à Igreja. Acreditava nela como um mistério autêntico, verdadeiro, mas transracional, vivia para ela e para a servir. A conjugação desta disposição subjectiva de amor, confiança e dedicação à Igreja com o optimismo do Papa levou a que eu pensasse: “Chegou a hora de vivermos intensamente o momento presente.” Isto depois transbordou para a vida política. Foram as eleições de Humberto Delgado que me acordaram, porque me queriam comprometer com o regime. E dei-me conta de que não estava com o regime, embora não soubesse porquê. Mas alheei-me ainda mais pela insistência, a impertinência com que me queriam comprometer. E nesse momento decidi não votar no candidato do Governo e votei no outro. Depois deu-se o assassinato - ou a morte, não sei se foi assassinato se foi morte por acidente - do subsecretário do Exército, na intentona de Beja. Era meu paroquiano. Havia uma certa afeição por um paroquiano que morreu, portanto, fui fazer-lhe o funeral e senti, com a família, a morte de um homem que era cristão e meu paroquiano. Mas isso levou-me a tomar conhecimento de uma efervescência que havia no país e se traduzira daquela maneira.»
Foi assim no trabalho da paróquia que se foi dando conta de que o país real era muito diferente do que pensava: «Vivi a guerra colonial primeiro através do drama das pessoas que tinham lá os filhos. Havia milhares de rapazes que iam para a guerra colonial e os dramas não se falava neles. Mas havia famílias que ficavam dilaceradas, crianças que ficavam órfãs. Esses dramas não apareciam muito claramente no cais de Alcântara ou no Cais da Rocha, mas apareciam no confessionário, na sacristia, no recôndito das famílias. Dramas muito fundos. Num 2º momento havia os dramas de uma corrente que contestava a guerra colonial. E iam presos. Alguns dos melhores jovens. Por idealismo, por posição política, por lucidez, recusavam ir para a guerra ou discutiam mesmo a questão. E eram presos, eram torturados. Ou tinham que se exilar. E alguns eram meus paroquianos. E eu não era insensível ao drama dessas famílias. E, num terceiro momento, comecei a ver que a guerra colonial dividia profundamente os católicos.»” Pretendeu distribuir um documento de Paulo VI que dizia não mais a guerra e a maior parte dos colaboradores recusou: «O documento não foi distribuído e eu fiquei a pensar como era possível que um documento contra a guerra não possa ser distribuído porque os paroquianos não concordavam com o fim da guerra. As mães iam a Fátima pedir a protecção da Virgem para os seus filhos irem matar, mas voltarem sãos. A que Senhora rezariam as mães dos pretos?»
Liga-se assim aos grupos católicos que há muito combatem o regime. Mas continua a preocupá-lo, sobretudo, a posição da Igreja Católica:
«O ensino da Teologia era de boa vontade, mas anacrónico. Mesmo comigo como professor, estava obrigado - não obedeci e a Igreja considerou desobediência - por um decreto da Congregação da Comissão Bíblica, a defender como verdades objectivas a criação do 1º homem a partir do barro, da 1ª mulher a partir do homem, a tentação do demónio com figura de serpente. Tudo isso como factos. (…) O pecado original era um problema que nos afligia, mas tínhamos de o ensinar. Até nos dava uma ideia mesquinha de Deus… O pecado original e o Inferno são dois tópicos que nos dão uma imagem mesquinha de Deus. Um Deus que faz isso é mais detestável que o mais detestável dos ayatollahs Khomeiny. Um Deus nojento, anacrónico, repelente. Um indivíduo que no início da Humanidade quer fazer a experiência de comer da maçãzinha arrasta para toda a espécie humana todos os males do Mundo, para sempre. Um Estaline que fizesse isso era execrando. E dizemos isso de Deus! Basta um pecado mortal e ter morrido sem se arrepender para ir para o Inferno…e o Inferno é eterno … a Fé católica admite o fogo real, não é figura de estilo - e a pessoa fica a arder para toda a eternidade porque cometeu um pecado mortal. Não há nenhum sistema político, o mais atroz ditador do Mundo não condena nenhum dos seus cidadãos a uma pena destas. Mas Deus - a Igreja Católica diz que sim. Teria de concluir que a imagem que a Igreja me dá de Deus é uma imagem execranda. Deus, se existe, não é aquilo. Não pode ser.»
Evitava, portanto, falar dos dogmas que achava deverem ser reelaborados:
«Eu acreditava na Igreja e na fé. E a Igreja e a fé não é uma colecção de fichas para uma enciclopédia. Se o Sol é um globo cheio de vida e actividade, a Fé é um mundo assim, mas muito superior. E a inteligência humana, sobretudo a colectiva, também é um órgão vivo. A nossa inteligência é uma fonte de renovação. E, portanto, caindo a fé numa inteligência viva, a acção e reacção recíproca hão de fazer cair a escória. Era nesta certeza de que a Fé era evolutiva que eu jogava. A certeza de que estava ao serviço de uma comunidade que tem séculos. E o Papa João XXIII veio-me animar nessa esperança.»
A chegada de padres africanos colocados sob resistência fixa foi mais um passo na sua consciencialização anti-colonial. Guardou, muitas vezes, documentos que estes entendiam ter de deixar em lugar seguro. Criou laços de amizade profunda. Escondia mal uma mágoa: que, já Cardeal, Alexandre Nascimento nunca tenha encontrado tempo para, numa das suas deslocações a Lisboa, se encontrar com ele.
Excelente comunicador, contou com minúcia a actuação do Cardeal Cerejeira quando da visita de Paulo VI à Índia: «Fomos chamados ao Paço patriarcal, todos os párocos de Lisboa e os directores de serviços. O Patriarca disse-nos: “No próximo domingo, os benditos pés do Vigário de Cristo vão pisar uma terra que só nos merece detestação.” Fiquei chocado: Então a um representante de Cristo há terras que só merecem detestação? “Mas o Papa explicou: disse que o moviam apenas intuitos religiosos. Não temos o direito de duvidar da palavra do Papa.” É uma voz perifrástica, sinal de que se duvida. “O Papa vai visitar Bombaim. De que falareis vós no próximo domingo?” perguntou Cerejeira e logo respondeu: “Falareis do evangelho do Fim do Mundo. Do fim do Mundo.” À saída dessa reunião, havia um grupo de 3 padres, que me chamaram e disseram que não iam obedecer e perguntaram-me se falaria da viagem. Eu disse que não. “Mas estás de acordo com ele? “Não. Mas obedeço. Também não vou falar do Fim do Mundo. Não falo.” Não falei. Nesse Domingo, a PIDE tinha gravadores ligados ao serviço de som. E eu li o Evangelho, fiz uma pausa e continuei “Creio em Deus Pai..” No dia seguinte, tinha uma chamada para comparecer no Paço às 3. E o Patriarca diz: “Chamei-te por causa da homilia…” “Mas eu não fiz homilia!” “Eu sei. Logo de manhã chamei o teu coadjutor, e ele disse-me. Mas ontem vieram-me dizer que tinhas falado da visita.” E acrescentou: “Tu não falaste da viagem, mas não concordaste com o que eu disse!” “Concordar ou não é um acto interno, a Igreja não tem que se pronunciar.” “Mas não concordaste! Vou-te dizer porque é que não concordaste: porque és meu amigo e ficaste chumbado por causa da triste figura que tive que fazer. Mas foi o Papa que mo pediu, para evitar um conflito com Salazar. O Salazar ameaçou cortar relações com a Santa Sé se eu não pusesse ordem os padres. Tive de obedecer!»
Aliás, sentiu sempre que nas relações Estado-Igreja, Salazar não curvava a espinha, era Cerejeira que o fazia: «E achando que o Salazar era um político maquiavélico, achava que era um homem de Estado, que nunca dobrou a espinha à Igreja. A Igreja é que lhe lambia as botas. O Salazar, nas relações pessoais comigo, foi de uma correcção, de uma serenidade espantosas. Deu ordens para não me tocarem: “É um homem generoso e bem intencionado, não lhe toquem sem minha licença.” E nunca me tocaram, só no tempo de Caetano.»
Em Maio de 70, é preso por 10 dias: «Nem chega para ser uma honra! E houve um movimento para me libertarem, então queriam que eu pagasse uma caução, foram descendo o preço, mas eu ia dizendo que não tinha dinheiro. O patriarca quis avançar com a caução e eu não quis ficar a dever-lhe favores. Pedi ao agente da livraria Morais. Porque houve um movimento de párocos que ameaçaram fazer greve às missas no dia do Corpo de Deus. Isso levou a que me libertassem. Fui tratado principescamente. O regime não me tratou como tratava o Lino Neto ou o Nuno Teotónio Pereira. Ou os operários.»
Acusado de incitar à violência e à luta armada, foi julgado e absolvido: «Eu não incitava à violência. Lutava contra a PIDE, que achava criminosa - continuei a achar durante o julgamento - não aceitava a Censura Prévia, que era uma destruição da alma do país, achava que os povos tinham direito à independência e isso defendi. O juiz, Florindo, achou eu isso não bastava para me condenar.»
Continuava entretanto preocupado com a teologia pastoral, a maneira como a comunidade dos cristãos se situa na vida: «Eu cheguei a ser abordado par celebrar missa pelo D. Duarte Nuno e, no dia seguinte, pelo aniversário da República. E depois pela vitória do Belenenses. E comecei a interrogar-me sobre o que era a missa. Um ornamento barato para interesses mesquinhos. É uma profanação, uma blasfémia.»
Definiu como «um dos maiores crimes que fiz na paróquia» a catequese: «A catequese, como está, é uma forma de criar ateus. Vamos facultar às criança fichas conceptuais. Aos 7 anos sabe aquilo. Aos 15, vomita tudo aquilo e torna-se ateu. Provisoriamente. Porque depois tem filhos, vão para a catequese e ele recupera, não a fé, mas o que vomitou. Infantilizou a fé. Não raciocinou. A Fé cristã é para adultos. Tal como existe, a catequese é uma forma de destruição da Fé.»
«Para lá da questão do colonialismo, para que acordei lentamente, estas eram questões para que acordei desde logo, a situação da Igreja em Portugal. Estava crucificada no madeiro da cruz. Não era Salazar que crucificava a Igreja. Eram os bispos, foi a Concordata. A Concordata de 1940, que Salazar assinou contra vontade, mas os bispos impuseram, é um acto de crucificação. Os capelães militares, o ensino religioso nas escolas, são chagas.»
Conta uma história significativa: «Um major veio falar comigo, a dizer-me que os capelães militares são uma graça de Deus: “Nós recebemos ordens para incendiar uma aldeia. A gente incendeia, mata mulheres e crianças e volta, amargurada, com problemas de consciência. Vimos destruídos. Depois vem o capelão militar, dá-nos uma palmada nas costas, diz: “Meu filho, cumpriste. Nunca ninguém se engana quando obedece!” Dá-nos a absolvição e nós vamos beber o whisky tranquilos!” Se eu tivesse dúvidas, o capelão militar tinha ficado com o estigma de uma coisa repelente. Absolvia o resto de culpabilização que talvez fosse positiva. Talvez seja útil para o Estado, para a instituição militar. Mas é péssimo para a Igreja, e era péssimo para eles.»
Casou-se em 1970. Os padres que assistiram foram suspensos: «Eu e a minha mulher fomos excomungados. Para as outras penas - suspensão e exoneração - não sei a razão. Há uma carta em que o patriarca diz que “do padre Felicidade nada restará”. Mas gostava de saber qual era a acusação. Porque eu vivi muito seriamente para a Igreja e, nessa altura, parecia estar a surgir aquela Igreja que tínhamos imaginado. O celibato nunca me custou. Mas no dia em que fui suspenso, deixou de haver razão para o celibato. O que mais desejaria era a revisão. Nós vivemos aquele momento com o João XXIII que foi um momento muito bonito. Houve um grupo de padres que viveu com grande entusiasmo. Depois foi destruído pelos capelães militares, as aulas de Moral.»